Unasul de novo? E o Congresso nessa história?

Por Nicolau Maldonado.

Artigo publicado originalmente no portal ConJur.

Em 6 abril de 2023, foi publicado o Decreto nº 11.475/2023, que promulga o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (Unasul). De novo. O tratado foi celebrado pelo Brasil em 2008, chancelado pelo Decreto Legislativo nº 159/2011 e promulgado pelo de nº 7.667/2012.

Em 2019, entretanto, em meio a uma mudança de rumos da política externa brasileira, o decreto de promulgação foi expressamente revogado pelo de nº 10.086/2019, o que foi questionado na ADI nº 6.544 por falta de prévia autorização do Congresso.

Deixando de lado a discussão sobre o mérito da reabilitação da Unasul — retomada de prestígio ou necromancia decorativa? —, o novo episódio da tramitação é mais uma oportunidade de debater o rito da internalização de tratados no direito brasileiro e suas consequências. Dessa vez, não houve nova deliberação legislativa quanto ao reingresso na Unasul. O decreto de 2023 elenca em seus consideranda o decreto legislativo de 2011, o mesmo que consentiu à primeira promulgação em 2012.

Afinal, quais os papéis reservados pela Constituição à Presidência da República e ao Congresso na celebração de tratados pelo Brasil? Qual a validade dos atos executivos que promulgaram, revogaram e promulgaram de novo o instrumento constitutivo da Unasul? E qual seu status de vigência hoje?

O rito de internalização de tratados, em suma

A Constituição foi econômica ao dispor sobre as competências do legislativo e executivo na celebração de tratados. Ao presidente cabe, privativamente, “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional” (artigo 84, VIII, CRFB). Ao Congresso, exclusivamente, “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (artigo 49, I, CRFB). Os regimentos internos pouco densificam o tratamento constitucional. De mais significativo, o da Câmara dispõe que pode ser de urgência a tramitação de mensagens do executivo que versem sobre tratados (artigo 151, j)) e o do Senado faculta ao seu presidente conferir competência terminativa a comissões na apreciação de tratado (artigo 91, § 1º, I).

Com base nesses lacônicos dispositivos, hoje o rito de internalização tem natureza preponderantemente costumeira. Em síntese, a regra é que, após a assinatura de um tratado ad referendum do Congresso, o presidente da República envie uma mensagem à Câmara dos Deputados com o texto do instrumento assinado acompanhada de exposição de motivos. Cabe o asterisco de que o envio da mensagem é ato discricionário da Presidência.

Recebida a mensagem, o presidente da Câmara designa as comissões de tramitação. No percurso, é formulado um projeto de decreto legislativo, que é submetido à votação no Plenário. Aprovado, o projeto é remetido ao Senado, onde é lido em Plenário e despachado pela Presidência da Casa. Em geral, é deliberado na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional e levado à votação em Plenário. A priori, as votações são tomadas em maioria simples. Ao fim da tramitação, o presidente do Senado promulga o decreto legislativo autorizando a ratificação do tratado pelo executivo.

A promulgação interna da norma se perfaz na forma de decreto editado pela Presidência da República. Dentre as múltiplas interpretações sobre a natureza desse ato, domina a visão de que ele confere vigência ao tratado no Direito brasileiro. Esses são, abreviadamente, os passos do rito de internalização de tratados no direito brasileiro. Há algumas variações (como a que envolve tratados de direitos humanos ou acordos executivos), porém a breve exposição basta para situar os imbróglios levantados pelo ingresso, saída e reentrada do Brasil na Unasul.

Ruído das vontades na internalização do tratado constitutivo da Unasul

No caso da internalização do Tratado Constitutivo da Unasul, se levantam duas controvérsias. Primeiro: seria necessária autorização do Congresso para a denúncia (a “rescisão”) do tratado pelo Executivo, tal como se requer para ratificação do instrumento? Segundo: seria necessária nova autorização do Congresso para a nova ratificação do tratado constitutivo da Unasul?

No Direito brasileiro, quem representa o Brasil perante outros estados e conduz a negociação, celebração, emenda e denúncia de tratados é o presidente da República. E quem “resolve definitivamente” sobre os tratados “que acarretem encargos ou compromissos gravosos” é o Congresso Nacional. Trata-se de ato subjetivamente complexo, para o qual são necessárias as vontades do legislativo e executivo federais. Mas qual ato? A locução “resolver definitivamente” não explica se a vontade do Congresso é exigida apenas para a celebração ou também para a denúncia de tratados pela presidência.

Não há resposta óbvia sobre a validade da revogação da primeira promulgação em 2019, consubstanciando internamente a denúncia ao tratado constitutivo da Unasul sem participação legislativa. A ADI nº 6.544 enquadra os principais argumentos pela invalidade, de que a denúncia é uma expressão volitiva que necessitaria de “resolução definitiva” parlamentar, inclusive porque no Brasil tratados são equiparados a leis, o que vedaria sua revogação unilateral pelo executivo. Também incidiria o paralelismo das formas, impondo-se para a extinção da norma o mesmo procedimento que a criou.

Na prática, as denúncias de tratados não são levadas ao Congresso. Mas prática não necessariamente é norma jurídica. Considerando que o rito de internalização de tratados é ordenado pela Constituição, e não por normas internacionais, é na Carta Magna que estarão suas regras. Posto isso, a dicção constitucional não parece distinguir se o crivo legislativo é necessário para ratificação ou denúncia de tratado pelo executivo.

Tal crivo envolve a definitividade da decisão sobre o tratado e se essa decisão carrega encargos ou compromissos gravosos. Por certo, a denúncia se encaixa no critério da definitividade, já que é o ato que termina o vínculo do Estado ao instrumento. Quanto à dificuldade em qualificar encargos ou compromissos gravosos, uma métrica básica seria verificar como se qualificou a adesão ao instrumento. Se a ratificação foi qualificada com encargo ou compromisso gravoso, a denúncia, via de regra, também deveria ser.

Quanto à controvérsia sobre a nova promulgação do Tratado Constitutivo da Unasul, o debate é menos avançado. De partida, vale ponderar que a autorização legislativa de 2011 não expira e nem obriga a Presidência à ratificação do tratado. Sua publicação faculta ao presidente da República promulgar o instrumento. Discricionariamente, quando conveniente. Se o Decreto de 2023 fosse a primeira promulgação, com base no aceite legislativo de 2011, não haveria celeuma. Acontece que existiu uma primeira promulgação em 2012, uma denúncia em 2019 e agora há uma segunda promulgação.

A perplexidade está expressa no Requerimento de Informação nº 785/2023, apresentado por deputado federal (e ainda não aprovado) para que o chanceler explique por que a nova adesão não passou pelo parlamento, considerando a denúncia anterior. É preciso de antemão dizer que eventual invalidade do decreto de 2019 ou sua revogação não atingiriam o ato internacional da denúncia. Consta que ele obedeceu aos procedimentos internacionais e, portanto, não pode ser desfeito com a anulação do ato interno que revogou a promulgação. Uma “repristinação” do decreto de 2012 não teria efeitos internacionais, e era mesmo necessário percorrer novamente o iter internacional de ratificação. Não seria preciso também um novo decreto legislativo?

A resposta pode estar nos “encargos e compromissos gravosos” referendados pelo decreto legislativo de 2011. Em sendo o mesmo tratado com o mesmo texto daquele já consentido pelo parlamento, em tese, os ônus são também os mesmos. A vontade legislativa já assentiu a esses mesmos ônus e não foi alterada. Esses fatores soam suficientes para sugerir uma desnecessidade de novo decreto legislativo.

Por outro lado, tampouco soa absurdo defender a imprescindibilidade de uma nova validação parlamentar. É que, além da vagueza da redação constitucional na definição de “encargos e compromisso gravosos” (que historicamente favorece a participação legislativa na internalização de tratados), é estranho que não seja aberta janela de reflexão ao Congresso sobre as diferentes posturas adotadas pelo Brasil em relação à Unasul nos últimos anos. Jeito ou outro, é preciso evoluir o debate.

Algumas considerações prospectivas

O percurso da internalização do tratado, um tanto turbulento, traz a oportunidade de discutir e aperfeiçoar esse procedimento constitucional, até por suas feições costumeiras. Quanto à denúncia de tratados, caso o STF não entenda pela perda de objeto da ADI nº 6.544 (uma saída possível em vista do retorno à Unasul), seria muito proveitosa uma decisão judicial sobre o papel parlamentar nesse procedimento. Os argumentos postos parecem indicar a necessidade de permissão do legislativo, mas, qualquer o desfecho, ao menos se teria uma orientação institucional mais firme do que a existente hoje.

Quanto à função do Congresso na segunda ratificação do tratado, a situação é mais incerta. Quem sabe o Requerimento de Informação nº 785/2023 seja uma opção para rascunhar alguma orientação institucional. Ou talvez seja uma proposição destinada às gavetas. Sem manchetes à vista, a política aparentemente acomodou a questão e não se imagina uma intensificação da controvérsia.

Aos olhos do direito internacional, a nova ratificação basta para que a Unasul possa ter vida própria. No direito brasileiro, a vigência do tratado é sustentada pela presunção de legitimidade do decreto de 2023. Naturalmente, a celeuma jurídica subsiste, dormente até uma outra ocasião, como também aquela avidez por respostas típica aos juristas mais curiosos.

A carência de capacitação dos Municípios para conceber e gerenciar projetos de licitação

Por Liz Guidini e Sophia Guimarães

Recentemente, foi divulgado o adiamento da entrada em vigor da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/2021), sobretudo em atendimento aos pleitos de Municípios que reclamavam do prazo de adaptação para o novo regime3, apesar de a sua publicação ter ocorrido há mais de dois anos. Tal notícia traz consigo uma reflexão sobre a capacitação desses entes federativos para gerenciar contratações públicas de maior complexidade, bem como sobre as possíveis medidas que podem ser adotadas para mitigar as dificuldades enfrentadas nas contratações em âmbitos local e regional. 

Quando se fala em contratações públicas de grande porte no nosso país, é possível perceber que o assunto tende a ficar concentrado nos projetos de iniciativa da União e de unidades da federação com maior PIB4. Os Municípios, em sua maioria, se encarregam de contratações de menor complexidade. É um reflexo da desigualdade regional. Em muitos casos, há dificuldades para o levantamento dos investimentos iniciais por esses entes subnacionais. Em outros, ainda que haja recursos, falta capacitação dos servidores para a concepção do projeto, desde a fase interna – que demanda estudos técnicos e jurídicos para a elaboração do edital – até as providências necessárias para o gerenciamento dos parceiros privados após a celebração do contrato. 

Essas dificuldades vêm inspirando iniciativas para o desenvolvimento de programas de fomento que têm o objetivo de trazer esses entes subnacionais a exercer maior protagonismo gerencial. O Programa de Parceria de Investimentos (“PPI”), e.g., tem exercido esse papel por meio de plataformas que visam prestar apoio logístico e intelectual para a contratação de serviços públicos que competem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. O objetivo é prestar ajuda técnica e operacional a esses entes na concepção e estruturação de projetos de parceria. 

Um exemplo recente de contratação feita a partir dessa plataforma ocorreu no setor de saneamento básico, com a publicação, de forma inédita, de um edital conjunto entre a Caixa Econômica Federal e o BNDES, em parceria com a Secretaria Especial do PPI5, que tinha por objeto concessões de manejo de resíduos sólidos urbanos. O edital de chamamento público foi destinado a Municípios, consórcios públicos e outros arranjos regionais. Por meio dele, a Caixa e o BNDES abriram a oportunidade para que os entes públicos apresentassem propostas para atuar na estruturação e no desenvolvimento de projetos. Ou seja, aqueles que tivessem interesse em formalizar uma futura parceria com o setor privado – para promover melhoria dos serviços de manejo dos resíduos sólidos – poderiam apresentar os documentos de habilitação necessários no âmbito do chamamento, demonstrando, assim, o desejo de obter o apoio técnico disponibilizado pelas instituições financeiras6. A CEF e o BNDES, nesse arranjo, exercem a função de “agentes estruturadores”. 

A partir das propostas apresentadas, esses agentes realizam, inicialmente, uma análise de vantajosidade para verificar se eventual concessão apresentaria melhor custo-benefício do que a gestão dos serviços de saneamento de forma direta, pelos próprios entes públicos habilitados no chamamento. Para as hipóteses em que a parceria se revele vantajosa, os agentes estruturadores usam seus recursos7 para custear a modelagem da concessão, a partir de estudos jurídicos, de viabilidade técnica e financeira. Além disso, no âmbito desse chamamento, há fornecimento de apoio aos entes na elaboração das minutas de edital e contrato, na definição das tarifas, na formulação de consultas públicas e na realização da própria licitação. Na prática, a Caixa e o BNDES funcionam como uma plataforma, realizando a estruturação dos projetos e conectando as duas ‘pontas’ da relação, isto é, os agentes públicos e privados.  

Como dito, além do apoio técnico, o modelo também contém incentivos de ordem financeira. Isso porque os Estados, Municípios ou outros arranjos regionais (que, nesse cenário, serão os eventuais contratantes públicos) não assumem obrigação imediata de desembolso de recursos. Na verdade, o próprio edital publicado pela Caixa e pelo BNDES já previu que, em caso de sucesso do projeto de concessão, o contratante pode atribuir ao licitante vencedor da futura concessão a responsabilidade de reembolsar os agentes estruturadores pelos custos com a consultoria prestada.  

A partir desse exemplo recente e de outros que se utilizaram de modelos semelhantes e apresentaram resultados positivos8, é possível perceber que, em relação a boa parte dos entes subnacionais, há uma carência de capacitação para a concepção de projetos a ser suprida. E o adiamento da entrada em vigor da nova Lei de Licitações, pleiteado pelos Municípios, é prova de que essa carência atinge contratações de complexidade e natureza diversas, inclusive as mais simples.  

Por esses motivos, arranjos criativos, a exemplo dessa dinâmica pré-contratual que vem sendo fomentada pelo PPI, podem representar boas oportunidades de viabilizar parcerias com o setor privado que, apesar de necessárias, não teriam condições de serem construídas em âmbito local/regional sem o auxílio de instituições com a devida expertise. Além dos auxílios financeiro, técnico e operacional, esse tipo de parceria pode ser visto pelos investidores como uma chancela da viabilidade financeira do projeto, incrementando a concorrência entre os parceiros privados. E o valor agregado dessa experiência para as Administrações Públicas locais é inestimável. 

A legalidade realista no direito administrativo sancionador

Por Alice Voronoff e Juliana Bonacorsi de Palma

Artigo publicado originalmente na coluna Fumus Boni Iuris do portal O Globo.

A legalidade é sem dúvida um dos princípios mais badalados e controversos nas prosas jurídicas. Não que se duvide de sua importância para o Estado Democrático de Direito. Mas em alguns campos, seu sentido e alcance ainda estão sujeitos a um enorme grau de incompreensão. Este artigo busca justamente provocar reflexões sobre o sentido da legalidade no direito administrativo sancionador. Em uma pergunta: a experiência prática pode trazer alguma ordem de limitação ao poder de o Estado punir? E nada melhor do que fazê-lo a partir de problemas hipotéticos, numa espécie de convite ao leitor para que teste suas convicções. A eles.

Problema n. 1: caso do cachorro no parque. Na cidade Feliz, há um belo parque municipal no qual uma placa avisa: “Proibida a entrada de animais. Infração sujeita a multa administrativa”. Felícia se mudou para a cidade Feliz há cerca de 3 anos e passou a morar em um apartamento com vista para o parque. Desde então, observa que muitas pessoas frequentam o parque com seus bichinhos de estimação e, curiosa, resolveu perguntar aos usuários se já haviam sido multados. Todos responderam negativamente e frisaram que isso jamais ocorreria porque a cidade Feliz seria historicamente um lugar amigo dos animais. Mais segura, Felícia comprou um cãozinho e resolveu passear com o novo amigo no parque. Qual não foi a surpresa quando, alguns dias depois, recebeu uma notificação de infração para que pagasse multa por desobedecer à proibição constante da lei municipal de ordenação dos parques urbanos. Pergunta-se: é legítimo o auto de infração lavrado contra Felícia?

Problema n. 2: caso da mudança de interpretação. A empresa Eficiente celebrou contrato de PPP com o município Moralidade, na modalidade de concessão administrativa, para construir e administrar determinado hospital municipal. De acordo com o contrato, a concessionária está sujeita à aplicação de multa sempre que for constatada fila de espera para internações com 10 ou mais pacientes por pelo menos 3 vezes no mesmo mês. Diz o contrato, contudo, que a penalidade deixará de ser aplicada nos casos de aumentos de demanda gerados por surtos virais classificados como graves. Assim foi que, no ano de 2010, verificado o gatilho contratual por conta de um surto de gripe, a empresa Eficiente deixou de ser punida com base na cláusula de exceção prevista no contrato. Em 2015, deflagrado novo gatilho de demanda em razão de um surto de gastroenterite, a empresa mais uma vez invocou a exceção contratual e não foi sancionada. Mas em 2020, após um aumento exponencial da demanda hospitalar em razão de novo surto de gripe, o pedido de aplicação da exceção foi rejeitado. Segundo o ente municipal, o conceito de “surto viral grave” seria indeterminado e, por isso, passível de reinterpretação no tempo. Logo, à luz do conhecimento científico mais recente, haveria elementos para se retirar a gripe da categoria de virose grave. No máximo, de gravidade média. Por conseguinte, se imporia a aplicação da penalidade contratual.

Problema n. 3: caso do prefeito expansivo. No município da Alegria, Seu João montou uma pequena lanchonete para incrementar a renda familiar. Ele sabia que, de acordo com as normas de ocupação do solo urbano, não poderia colocar mesas e cadeiras nas calçadas para servir sua clientela. Mas desde que o prefeito Felicidade assumiu o comando do Poder Executivo, passou a dizer publicamente que tais regras seriam contrárias aos interesses da população. Afinal, as mesinhas expandiriam os espaços de lazer da cidade e todos ganhariam em bem-estar. Incentivado pelas declarações públicas do prefeito, Seu João colocou 5 mesinhas em frente à sua lanchonete, como o fizeram outros comerciantes. Quatro anos depois, contudo, recebeu diversas autuações da Secretaria Municipal da Ordem Pública pelo descumprimento flagrante da legislação vigente. Perplexo, Seu João procurou o ex-prefeito para resolver esse absurdo, mas não teve sucesso. Segundo Felicidade, as regras seriam válidas e nunca teriam sido revogadas ou anuladas, apesar de considerá-las de mau gosto.

São três casos que podem ser resolvidos à luz da legalidade. Mas dependendo do sentido que se atribua ao princípio, as respostas serão diametralmente opostas.

No sentido formal, de uma legalidade positivada, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João devem ser sancionados. Trata-se da aplicação da legislação tomada como uma fotografia: a imagem estática daquilo que consta dos códigos. A isso se poderia adicionar um argumento de autoridade: a natureza vinculada da atividade sancionatória da Administração Pública. Descumprida a regra formal, cabe ao administrador aplicar a consequência prevista no comando jurídico, sob pena de prevaricar. Isso, frise-se, independentemente de comparações com casos ou momentos diversos.

Já se o leitor trilhar pela legalidade material — i.e., a legalidade enquanto juridicidade, como vinculação ao ordenamento jurídico, incluindo a normatividade constitucional —, é possível defender que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João não podem ser sancionados. Nos três casos, porque o comportamento da Administração Pública não pode ser ignorado. Como num filme, ele importa. Mais do que isso, ele integra o sentido de legalidade. No primeiro caso, a omissão da prefeitura por um tempo considerável criou em Felícia a percepção de que entrar com animaizinhos no parque era a regra na cidade Feliz, e não o contrário. Como ela poderia pensar de modo diverso, se ao longo de pelo menos três anos todos os seus vizinhos e frequentadores levaram seus cães, gatos e bichinhos ao parque? No segundo caso, a empresa Eficiente tinha exemplos de situações pretéritas vivenciadas ao longo da execução contratual em que o Poder Concedente claramente manifestou seu entendimento a propósito dos surtos virais, incluindo os de gripe. Poderia ela ser surpreendida com a sanção em situação análoga, sob o pretexto de aplicação de um entendimento até então jamais externalizado pela Administração Pública? No terceiro caso, as declarações públicas do chefe do Poder Executivo, seguidas do apoio das autoridades à ocupação das calçadas, gerou em Seu João a convicção de que a proibição teria sido superada. Pode-se afirmar que ele agiu de má-fé, com a intenção de descumprir as regras de ocupação do espaço urbano?

Enfim, a questão é saber se há resposta certa a cada um desses problemas, ou se a beleza do Direito consiste justamente na pluralidade de raciocínios legítimos que possam ser desenvolvidos. A nosso ver, há resposta certa: apenas o sentido material de legalidade resolve legitimamente tais casos. É que não há legalidade possível sem previsibilidade. O poder de punir da Administração Pública pressupõe que os particulares conheçam com clareza as condutas que lhe são vedadas ou exigidas. E isso não se verifica nas três situações hipotéticas analisadas. Seja pelo costume de o Poder Público tolerar o descumprimento da lei, na primeira delas; pela mudança de interpretação, na segunda; pelas declarações públicas de cunho orientativo, na terceira. A verdade é que Felícia, a empresa Eficiente e Seu João foram legitimamente induzidos a acreditar que se comportavam em conformidade com o ordenamento jurídico.

Apenas o sentido material da legalidade considera a realidade. E há muitas formas de a Administração Pública — a maior intérprete do Direito — modificar o mundo dos fatos: práticas, costumes, precedentes, orientações, tolerâncias, decisões, atos de execução material, omissões etc. Leis, decretos e regulamentos são documentos com textos escritos. Sem se conectarem com a realidade, nada são. A norma jurídica é a interpretação que se confere ao texto normativo diante de uma situação concreta, que também compreende as várias expressões da Administração Pública.

Ao levar seu cachorro ao parque, Felícia cumpriu com a norma de admitir cachorros no parque fruto da tolerância das autoridades públicas, embora o texto legal os proibisse. A empresa Eficiente cumpriu com a norma de compreender “surto viral grave” conforme decisões pretéritas do Poder Público. Seu João cumpriu à risca as orientações do ex-prefeito Feliz, chefe do Poder Executivo e com hierarquia na interpretação normativa. Esses são todos exemplos de conformidade. Por isso afirmar com tanta ênfase que a legalidade formal não foi recepcionada no Direito Administrativo Sancionador, apesar de esta ideia ainda ser forte na cultura jurídica brasileira, levando ao exercício sistemático do poder sancionador de modo ilegítimo e teratológico.

Em rigor, os casos hipotéticos acima sequer são difíceis. Há problemas um tanto mais complexos com os quais se preocupar no direito. Otimizemos nossas energias.

Artigo | Desenhos de mercado, licitações e três apostas da Lei nº 14.133/2021

O artigo publicado na Revista Eletrônica da PGE-RJ analisa aspectos da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) à luz da teoria dos desenhos de mercado. Nosso sócio André Cyrino e nosso advogado Renato Toledo abordam inovações da Lei nº 14.133/2021 que têm enorme potencial para colaborar para o bom funcionamento das contratações públicas.

Leia na íntegra clicando aqui.

Daniel Kahneman, a academia e a prática jurídica

Reconhecer erros não é fácil, seja na vida pessoal ou profissional. Mas nossa cultura jurídica traz dificuldades adicionais ao desenvolvimento dessa virtude. Profissionais do direito são usualmente ensinados que estar certo é vencer e que reconhecer o erro é conceder.

Citando uma conhecida história sobre a honestidade intelectual de Daniel Kahneman, prêmio Nobel de economia de 2002, nosso sócio Gustavo Binenbojm propõe uma importante reflexão sobre reconhecer e aprender com os próprios erros como caminho para a verdadeira sabedoria.

Leia na íntegra o artigo publicado no portal jurídico JOTA.