Publicações

A política nacional de outorgas rodoviárias

Em outubro de 2023, o Ministério dos Transportes instituiu a Política Nacional de Outorgas Rodoviárias por meio da Portaria nº 995, que entrou em vigor em 1º de novembro. 

As rodovias federias vêm sendo concedidas desde 1993, com a criação do Programa de Concessões de Rodovias Federais, cujo objetivo era conceder ao setor privado a exploração de aproximadamente 25% dos 52 mil km de rodovias pavimentadas da rede rodoviária federal. Desde então, foram feitas quatro etapas de concessões, em 1994, 2007, 2013 e 2018. Em 2005, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) assumiu a regulação dos contratos das rodovias federais concedidas, até então a cargo do Ministério dos Transportes. Hoje, somam-se 26,7 mil km de rodovias concedidas1, e é interesse do Governo Federal aumentar expandir esses números2

A Política Nacional de Outorgas busca não só atrair mais investidores interessados nas concessões do país, mas trazer modernização, padronização e otimização aos contratos de concessão, incluindo melhores condições para o reequilíbrio daqueles já existentes. Nas palavras de George Santoro, Secretário Executivo do Ministério dos Transportes3, buscou-se criar um “contrato de gestão” entre o Ministério e a ANTT para facilitar novos contratos, por meio da formulação de projetos mais atrativos e otimização da gestão dos contratos antigos. 

A Política é abrangente e abarca disposições sobre: (i) os segmentos viários da malha a serem contemplados com soluções de parcerias; (ii) o modelo de parceria mais adequado a cada segmento viário; (iii) a política tarifária e premissas de pedagiamento; (iv) premissas macroeconômicas para a estruturação de novas parcerias; (v) prazo de concessão, modalidade de licitação, critério para definição do vencedor do certame e recursos aportados no projeto ao longo do prazo da concessão; (vi) a repartição de riscos entre o concessionário e o poder concedente; (vii) os níveis de serviço, padrões e parâmetros referentes à operação, ao atendimento ao usuário e à infraestrutura, de acordo com o trecho ou o período da concessão; (viii) incentivos ao desenvolvimento de uma infraestrutura viária resiliente, ambiental e economicamente sustentável; (ix) a instituição e o aprimoramento de mecanismos para o monitoramento contínuo e permanente dos investimentos realizados durante a concessão; (x) incentivo e à execução de investimentos obrigatórios com ganhos de prazo e melhor desempenho; e (xi) o incentivo de exploração de receitas acessórias pelas empresas concessionárias. 

O texto da Política não é totalmente inovador. Muitas das disposições previstas já constavam de normativos anteriores, como a Portaria nº 961, de 24 de novembro de 2017, do Ministro de Estado dos Transportes, Portos e Aviação Civil4, e a Portaria nº 1.061, de 15 de agosto de 20225, do Ministério da Infraestrutura. A Portaria nº 1.061/2022 já remetia, por exemplo: 

  • à política tarifária e às premissas de pedagiamento, com incentivos considerando oferta de infraestrutura diferenciada, tarifa variável de acordo com o horário ou período da cobrança, além do emprego e eventuais descontos a título de incentivo ao uso de novas tecnologias para cobrança (art. 1º, III); 
  • à repartição de riscos entre o concessionário e o poder concedente (art. 1º, VI);  
  • a níveis diferenciados de serviço, padrões e parâmetros referentes à operação, ao atendimento ao usuário e à infraestrutura, conforme a adoção de soluções técnicas, recursos tecnológicos ou sistemas inteligentes (art. 1º, VII); e 
  • a incentivos ao desenvolvimento de uma infraestrutura viária ambiental e economicamente sustentável (art. 1º, VIII). 

Vale destacar algumas das preocupações e temas trazidos pela Portaria nº 995/2023 que podem contribuir para a expansão das concessões e melhoria da governança de parcerias no setor rodoviário. A eles. 

POLÍTICA TARIFÁRIA E PREMISSAS DE PEDAGIAMENTO 

Uma das premissas gerais aos projetos de parceria é o privilégio à modicidade tarifária. Não a uma modicidade acrítica, compreendida como redução tarifária a todo e qualquer custo, mas uma modicidade que considere a racionalização de recursos e a sustentabilidade social e ambiental (art. 7º). Modicidade, ademais, que deve ser compreendida à luz da diretriz basilar da justiça tarifária, “sem que sua aplicação reduza a qualidade do serviço ofertado” (art. 13).  

Quanto ao pedagiamento, interessante notar o incentivo ao uso de tecnologia na cobrança do pedágio. Nesse sentido, são previstas a concessão de tarifas diferenciadas pelo uso de etiquetas eletrônicas (“tags”) (art. 13, § 2º) e um comando de implantação de sistemas de pedagiamento automático de livre passagem (“Free Flow”), se possível no início da operação ou, não o sendo, em tempo razoável, preferencialmente até o 5º ano (art. 13, § 4º). 

REPARTIÇÃO DE RISCOS ENTRE O CONCESSIONÁRIO E O PODER CONCEDENTE 

A Política avança ao trazer a obrigatoriedade de disciplina contratual de variações relevantes de tráfego e de custos de insumos (art. 14, I e II); impactos financeiros decorrentes de eventuais “evasões de pedágio” em projetos que prevejam o pagamento automático do pedágio (“Free Flow”) (art. 14, III); além do compartilhamento de riscos residuais (art. 14, V). 

São previsões salutares que traduzem aprendizados alcançados após discussões longas sobre desequilíbrios contratuais, as quais aumentaram sensivelmente os custos das partes pública e privada ao longo dos programas de concessões. Não há eficiência possível quando a repartição de riscos é irracional, a ponto de alocar no particular os ônus decorrentes de eventos que ele simplesmente não pode gerenciar. Isto é, ocorrências sobre as quais o parceiro privado não consegue interferir, a fim de adotar medidas de mitigação, e que sequer poderia antever ao tempo da elaboração de sua proposta.  

Sob essa ótica, andou bem a Portaria ao determinar, por exemplo, que os riscos de variações relevantes de demanda sejam compartilhados. Isso rompe com a máxima (equivocada) de que o risco de demanda deva caber sempre ao concessionário. Com a Covid-19, e.g., ficou claro que oscilações nessa variável podem não apenas decorrer de causas absolutamente alheias ao delegatário (e, no caso da pandemia, caracterizadoras de caso fortuito e força maior não segurável, categorias cujos riscos são usualmente alocados ao Poder Concedente), como podem causar impactos insuportáveis. Daí a importância de soluções endógenas ao arranho contratual que propiciem o tratamento célere e efetivo de contingências graves, em benefício da sustentabilidade do projeto. 

EXPLORAÇÃO DE RECEITAS ACESSÓRIAS 

Em reforço ao art. 11 da Lei nº 8.987/1995, a Política incentiva a exploração de receita extraordinária ou acessória decorrente da utilização da faixa de domínio pela própria concessionária, inclusive, e não se limitando, à comercialização de Pontos de Parada e Descanso (PPDs) (art. 14, §2º). A previsão reforça a relevância dessas receitas para modelagem de projetos atrativos e vantajosos, não apenas para as concessionárias, mas também para o Poder Concedente. Tais valores revertem em favor da modicidade e o contrato pode disciplinar como e quando os ganhos adicionais serão compartilhados.  

Mas é preciso levar a sério tais previsões. Isto é, oferecer credibilidade e segurança jurídica ao particular quanto à possibilidade efetiva de arrecadar tais receitas, incluindo o necessário conforto do ponto de vista normativo.  

Veja-se que o tema está na ordem do dia. Discute-se no Poder Judiciário se as concessionárias de rodovias têm o direito de cobrar pelo uso de suas faixas de domínio, com base no art. 11 da Lei nº 8.987/1995 e em seus contratos, quando os usuários forem outros prestadores de serviços públicos. Depois da consolidação de entendimento favorável a essa cobrança no âmbito do STJ, a discussão se reabriu no âmbito do STF, com entendimentos divergentes6. Sem dúvida, eventual reversão do entendimento pacificado do Superior Tribunal de Justiça impactará a Política desenhada pelo Ministério dos Transportes e a própria dinâmica das parcerias nessa matéria. 

INCENTIVOS AO DESENVOLVIMENTO DE UMA INFRAESTRUTURA VIÁRIA RESILIENTE, AMBIENTAL E ECONOMICAMENTE SUSTENTÁVEL E AO USO DE NOVAS TECNOLOGIAS 

A Portaria nº 995/2023 aposta no investimento em tecnologia como caminho para promover a sustentabilidade e a responsabilidade socioambiental, que já eram trazidas como princípio pela Política Nacional de Transportes e como atributo de valor pelo Mapa Estratégico do Ministério da Infraestrutura7

Adotam-se como parâmetros operacionais e de desempenho de infraestrutura a promoção de inovações tecnológicas que otimizem os tempos de atendimento, reduzam custos e incentivem a sustentabilidade ambiental.  

São exemplos de iniciativas nesse sentido: a implantação de sistemas Free Flow; a substituição ou redução de Veículos de Inspeção de Tráfego (VITs); a redução de Circuitos Fechados de Televisão (CFTVs); a utilização de drones; a previsão de telemedicina; o uso de tecnologia 5G; a implantação de câmeras com reconhecimento ótico de caracteres (OCR) em locais estratégicos; a pesagem automática em movimento; e o estímulo à transição energética e uso de veículos elétricos, com adoção de, pelo menos, um ponto de recarga em cada posto de Serviço de Atendimento ao Usuário (SAL) e Ponto de Parada e Descanso (PPD) (art. 16, § 3º). 

OUTRAS DISPOSIÇÕES SOBRE SUSTENTABILIDADE E RESPONSABILIDADE CORPORATIVA 

A Portaria inova também ao trazer critérios de governança social, condizentes com a Agenda ESG8, como a previsão de ações afirmativas de gênero e raça pelas concessionárias, incluindo: recrutamento diversificado com divulgação de vagas de emprego em canais de comunicação ao alcance de grupos em situações marginalizadas; promoção de progressão igualitária – programas de treinamento da empresa abrangendo oportunidades àqueles com menor nível de escolaridade; promoção de ambiente inclusivo – realização de treinamentos contra o preconceito e de sensibilização a políticas internas contra discriminação de raça e de gênero e assédios; e a adesão às políticas públicas de caráter social estabelecidas pelo Governo Federal (art. 19, caput e parágrafo único). 

DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIAS PARA A ELABORAÇÃO E APROVAÇÃO DOS PROJETOS DE PARCERIA E PLANOS DE OUTORGA 

Na estrutura anterior, estabelecida pela Portaria nº 1.061/2022, a propositura, implementação e monitoramento da política de outorgas cabia à Secretaria Nacional de Transportes Terrestres, em articulação com a Secretaria de Fomento, Planejamento e Parcerias. 

Na Portaria nº 995/2023, a contratação dos Projetos de Parceria fica a cargo do Ministério dos Transportes (art. 21). Os estudos são submetidos às contribuições da sociedade por meio de audiências públicas pela ANTT (art. 23). Com base nos Projetos, a ANTT elabora os Planos de Outorga (art. 26), que já faziam parte da sua competência, e que devem ser aprovados pelo Ministro de Estado dos Transportes e submetidos à análise do Tribunal de Contas da União (art. 30). 

Nesse quesito, não há grandes alterações. Também não há uma divisão mais clara de funções ou o esclarecimento de quais são as unidades responsáveis pelas decisões técnicas e políticas. Faltou à Portaria uma atribuição mais clara quanto as atribuições de cada ente. 

CONCLUSÃO 

A Portaria nº 995/2023 traz inovações interessantes e aposta na tecnologia, tudo em linha com as propostas mais recentes da agenda ESG. É mais um passo, que já vinha sendo construído pela normativa anterior, no sentido do fomento ao investimento em concessões rodoviárias.  

Para que “saia do papel”, há ainda esforços importantes a serem feitos. Mas não se pode negar caráter normativo à Resolução, recheada de comandos – basta ver quem “deverá” fazer algo, quais órgãos “deverão” obedecer a determinadas pautas, e assim por diante. Fiscalizemos. E cobremos.