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A carência de capacitação dos Municípios para conceber e gerenciar projetos de licitação

Por Liz Guidini e Sophia Guimarães

Recentemente, foi divulgado o adiamento da entrada em vigor da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/2021), sobretudo em atendimento aos pleitos de Municípios que reclamavam do prazo de adaptação para o novo regime3, apesar de a sua publicação ter ocorrido há mais de dois anos. Tal notícia traz consigo uma reflexão sobre a capacitação desses entes federativos para gerenciar contratações públicas de maior complexidade, bem como sobre as possíveis medidas que podem ser adotadas para mitigar as dificuldades enfrentadas nas contratações em âmbitos local e regional. 

Quando se fala em contratações públicas de grande porte no nosso país, é possível perceber que o assunto tende a ficar concentrado nos projetos de iniciativa da União e de unidades da federação com maior PIB4. Os Municípios, em sua maioria, se encarregam de contratações de menor complexidade. É um reflexo da desigualdade regional. Em muitos casos, há dificuldades para o levantamento dos investimentos iniciais por esses entes subnacionais. Em outros, ainda que haja recursos, falta capacitação dos servidores para a concepção do projeto, desde a fase interna – que demanda estudos técnicos e jurídicos para a elaboração do edital – até as providências necessárias para o gerenciamento dos parceiros privados após a celebração do contrato. 

Essas dificuldades vêm inspirando iniciativas para o desenvolvimento de programas de fomento que têm o objetivo de trazer esses entes subnacionais a exercer maior protagonismo gerencial. O Programa de Parceria de Investimentos (“PPI”), e.g., tem exercido esse papel por meio de plataformas que visam prestar apoio logístico e intelectual para a contratação de serviços públicos que competem aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. O objetivo é prestar ajuda técnica e operacional a esses entes na concepção e estruturação de projetos de parceria. 

Um exemplo recente de contratação feita a partir dessa plataforma ocorreu no setor de saneamento básico, com a publicação, de forma inédita, de um edital conjunto entre a Caixa Econômica Federal e o BNDES, em parceria com a Secretaria Especial do PPI5, que tinha por objeto concessões de manejo de resíduos sólidos urbanos. O edital de chamamento público foi destinado a Municípios, consórcios públicos e outros arranjos regionais. Por meio dele, a Caixa e o BNDES abriram a oportunidade para que os entes públicos apresentassem propostas para atuar na estruturação e no desenvolvimento de projetos. Ou seja, aqueles que tivessem interesse em formalizar uma futura parceria com o setor privado – para promover melhoria dos serviços de manejo dos resíduos sólidos – poderiam apresentar os documentos de habilitação necessários no âmbito do chamamento, demonstrando, assim, o desejo de obter o apoio técnico disponibilizado pelas instituições financeiras6. A CEF e o BNDES, nesse arranjo, exercem a função de “agentes estruturadores”. 

A partir das propostas apresentadas, esses agentes realizam, inicialmente, uma análise de vantajosidade para verificar se eventual concessão apresentaria melhor custo-benefício do que a gestão dos serviços de saneamento de forma direta, pelos próprios entes públicos habilitados no chamamento. Para as hipóteses em que a parceria se revele vantajosa, os agentes estruturadores usam seus recursos7 para custear a modelagem da concessão, a partir de estudos jurídicos, de viabilidade técnica e financeira. Além disso, no âmbito desse chamamento, há fornecimento de apoio aos entes na elaboração das minutas de edital e contrato, na definição das tarifas, na formulação de consultas públicas e na realização da própria licitação. Na prática, a Caixa e o BNDES funcionam como uma plataforma, realizando a estruturação dos projetos e conectando as duas ‘pontas’ da relação, isto é, os agentes públicos e privados.  

Como dito, além do apoio técnico, o modelo também contém incentivos de ordem financeira. Isso porque os Estados, Municípios ou outros arranjos regionais (que, nesse cenário, serão os eventuais contratantes públicos) não assumem obrigação imediata de desembolso de recursos. Na verdade, o próprio edital publicado pela Caixa e pelo BNDES já previu que, em caso de sucesso do projeto de concessão, o contratante pode atribuir ao licitante vencedor da futura concessão a responsabilidade de reembolsar os agentes estruturadores pelos custos com a consultoria prestada.  

A partir desse exemplo recente e de outros que se utilizaram de modelos semelhantes e apresentaram resultados positivos8, é possível perceber que, em relação a boa parte dos entes subnacionais, há uma carência de capacitação para a concepção de projetos a ser suprida. E o adiamento da entrada em vigor da nova Lei de Licitações, pleiteado pelos Municípios, é prova de que essa carência atinge contratações de complexidade e natureza diversas, inclusive as mais simples.  

Por esses motivos, arranjos criativos, a exemplo dessa dinâmica pré-contratual que vem sendo fomentada pelo PPI, podem representar boas oportunidades de viabilizar parcerias com o setor privado que, apesar de necessárias, não teriam condições de serem construídas em âmbito local/regional sem o auxílio de instituições com a devida expertise. Além dos auxílios financeiro, técnico e operacional, esse tipo de parceria pode ser visto pelos investidores como uma chancela da viabilidade financeira do projeto, incrementando a concorrência entre os parceiros privados. E o valor agregado dessa experiência para as Administrações Públicas locais é inestimável.